Apresentação

Encontro Poético é uma proposta e uma homenagem.
Proposta porque trata-se de um estudo que a poetisa Rita Encinas tem elaborado sobre as influências da poética internacional, clássica e contemporânea, sobre o trabalho dos novos autores brasileiros, especialmente os que têm apresentado suas poesias nos diversos espaços disponíveis na internet, como blogs, fóruns e sites de relacionamento.
E homenagem porque aqui ela pretende apresentar as poesias das quais ela mesma mais gosta e, com isso, levar aos seus leitores uma visão ampla sobre o que vem a ser, na sua opinião, a beleza poética.
De qualquer forma é, sem dúvida, um ótimo painel sobre a arte, seja para leitores experientes que podem aqui encontrar alguns de seus textos favoritos, como para leigos que podem a partir deles iniciar-se no maravilhoso mundo da poesia.
Boa leitura!
Cerito Silva

Seguidores

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

Poema à boca fechada




















Não direi:
Que o silêncio me sufoca e amordaça.
Calado estou, calado ficarei,
Pois que a língua que falo é de outra raça.

Palavras consumidas se acumulam,
Se represam, cisterna de águas mortas,
Ácidas mágoas em limos transformadas,
Vaza de fundo em que há raízes tortas.

Não direi:
Que nem sequer o esforço de as dizer merecem,
Palavras que não digam quanto sei
Neste retiro em que me não conhecem.

Nem só lodos se arrastam, nem só lamas,
Nem só animais bóiam, mortos, medos,
Túrgidos frutos em cachos se entrelaçam
No negro poço de onde sobem dedos.

Só direi,
Crispadamente recolhido e mudo,
Que quem se cala quando me calei
Não poderá morrer sem dizer tudo.

José Saramago

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Choro bandido




















Mesmo que os cantores sejam falsos como eu
Serão bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo miseráveis os poetas
Os seus versos serão bons
Mesmo porque as notas eram surdas
Quando um deus sonso e ladrão
Fez das tripas a primeira lira
Que animou todos os sons
E daí nasceram as baladas
E os arroubos de bandidos como eu
Cantando assim:
Você nasceu para mim
Você nasceu para mim

Mesmo que você feche os ouvidos
E as janelas do vestido
Minha musa vai cair em tentação
Mesmo porque estou falando grego
Com sua imaginação
Mesmo que você fuja de mim
Por labirintos e alçapões
Saiba que os poetas como os cegos
Podem ver na escuridão
E eis que, menos sábios do que antes
Os seus lábios ofegantes
Hão de se entregar assim:
Me leve até o fim
Me leve até o fim

Mesmo que os romances sejam falsos como o nosso
São bonitas, não importa
São bonitas as canções
Mesmo sendo errados os amantes
Seus amores serão bons

Edu Lobo/Chico Buarque

Oceano









Assim
Que o dia amanheceu
Lá no mar alto da paixão,
Dava prá ver o tempo ruir
Cadê você?
Que solidão!
Esquecera de mim?

Enfim,
De tudo o que
Há na terra
Não há nada em lugar
Nenhum!
Que vá crescer
Sem você chegar
Longe de ti
Tudo parou
Ninguém sabe
O que eu sofri...

Amar é um deserto
E seus temores
Vida que vai na sela
Dessas dores
Não sabe voltar
Me dá teu calor...

Vem me fazer feliz
Porque eu te amo
Você deságua em mim
E eu oceano
E esqueço que amar
É quase uma dor...

Só sei viver
Se for por você!

Djavan

O holograma














A mensagem
(o mitograma)
no recado da luz tridimensional
nas ondas quando
se refletem: - teus olhos.

O brilho na chapa
da cratera do sol
retornando em ondas inapreensíveis
gravadas pela estrela
que desapareceu em vida
e se recriou
em sua luz que extinta
(assim como nós
em várias vezes da vida).

As imagens da luz
permanecem nas qualidades tônicas
das dimensões holográficas
e nas que sublimamos
de coisas reais:

mas não podemos tocá-las,
como se viessem de um diamante
ou do sorriso da adolescente desnuda
procurando o orgasmo, perseguida pelo vento,
num jardim.

Em suas múltiplas faces fugitivas
se fixa atrás da imagem e do tempo
como foi descoberto no início
pelo visionário que se imaginava deus.

Daí o holograma
com sua mensagem e o mito
da dimensão definitiva,
na geometria do tempo.

Álvaro Pacheco

Geometria dos ventos

















Eis que temos aqui a Poesia,
a grande Poesia.
Que não oferece signos
nem linguagem específica, não respeita
sequer os limites do idioma. Ela flui, como um rio.
como o sangue nas artérias,
tão espontânea que nem se sabe como foi escrita.
E ao mesmo tempo tão elaborada -
feito uma flor na sua perfeição minuciosa,
um cristal que se arranca da terra
já dentro da geometria impecável
da sua lapidação.
Onde se conta uma história,
onde se vive um delírio; onde a condição humana exacerba,
até à fronteira da loucura,
junto com Vincent e os seus girassóis de fogo,
à sombra de Eva Braun, envolta no mistério ao
mesmo tempo
fácil e insolúvel da sua tragédia.
Sim, é o encontro com a Poesia.

Poesia feita em homenagem ao poema
"Geometria dos Ventos" de Álvaro Pacheco


Rachel de Queiroz

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

História de amor





















Vieste... E me falaste de um alguém infiel
que traíra a tua vida
e a quem deras no entanto o teu amor...
Vieste... E me falaste a linguagem de fel
da tua alma ferida,
( e em teus olhos havia atormentada e presa
uma imensa tristeza, um profundo amargor...)

Quem te viu como te vi - a falar a linguagem
da suprema amargura
da incurável desilusão,
como quem abatido chega ao fim da viagem
e encontra um velho sonho de ventura
em pedaços no chão...

Quem te viu como eu vi – beirando o precipício
e quase em desatino,
sem saber procurar se quer um novo início
para o seu destino...

Vieste... e eu dei-te o abrigo dos meus braços,
- comovi-me... e senti meus olhos baços
diante da tua dor...
e sem que eu próprio saiba como consegui
aos poucos, muito aos poucos, dia a dia, eu vi
que vencias o infiel, o amargurado amor...

Uma tarde... em que te vi chegar, rindo e chorando,
numa emotividade
que punha em teu olhar imprevisto esplendor,
pensei que nessa tarde enfim, eu te pudesse
desvendar meu segredo de felicidade
e pedir teu carinho para meu amor...

Chegaste... Me entregaste a mão, e me disseste
entre terna e comovida:
- Ah! Meu amigo!
nem tu compreenderás todo o bem que fizeste
agora que afinal posso seguir de novo
radiante, sem perigo...

E entre terna e comovida
silenciaste,
e me entregaste a mão...

Era a despedida...
- pior que a despedida: - era a separação...
Num derradeira gesto impensado, numa alegria louca
no instante de partir:
- beijaste-me na boca
e te foste a sorrir...

Para que? Para que me beijaste-me na boca?
Hoje a minha alma sofre , e o meu desejo goza
a angústia dessa lembrança...
Ah! Meu amor... o quanto foste louca
e impiedosa,
o quanto foste criança!

Poema de J.G. de Araujo Jorge, extraído do livro
"Meu Céu Interior", 1ª edição, 1934

Sabor de um beijo

















Quisera eu ser poeta, mais poeta
Do que já sou, para cantar num verso,
A grandeza da vida...E ter liberta,
A alma a esvoaçar pelo Universo.

Quisera eu ser um passarinho errante,
Que voa...Voa sempre e nunca pára,
Para buscar, em algum lugar distante,
A inspiração mais linda, pura e rara.

Pois tenho um sonho...Um sonho irrealizável...
De querer ponderar o imponderável,
De me atrever ao que ninguém se atreve:

Eu quero a todo custo e afoitamente,
Descrever o sabor de um beijo ardente,
Que todos sentem, mas ninguém descreve.

Sá de Freitas

Encarnação



















Carnais, sejam carnais tantos desejos,
carnais, sejam carnais tantos anseios,
palpitações e frêmitos e enleios,
das harpas da emoção tantos arpejos...
Sonhos, que vão, por trêmulos adejos,
à noite, ao luar, intumescer os seios
láteos, de finos e azulados veios
de virgindade, de pudor, de pejos...

Sejam carnais todos os sonhos brumos
de estranhos, vagos, estrelados rumos
onde as Visões do amor dormem geladas...

Sonhos, palpitações, desejos e ânsias

formem, com claridades e fragrâncias,

a encarnação das lívidas Amadas!


Cruz e Souza

Soneto CXXXVI

















Se tua alma te repreender que eu me aproxime tanto,
Jure à tua alma cega que eu era a tua Vontade,
E a vontade, tua alma bem o sabe, é ali admitida pertinho;
Assim transtornado por amor, meu pedido de amor, doce realize.
A Vontade realizará o tesouro do teu amor,
Sim, o preencherá de vontades, e a minha uma,
Coisas de grande receita com facilidade provamos,
Entre os números, o um não é reconhecido
Então não me conte nos números,
Apesar de, nas contas tuas, eu dever ser um;
Por nada me tomes, então por favor me estime
Esse nada eu, como um algo doce de ti;
Faça apenas do meu amor o teu amor, e ame isso ainda,
E tu então me amarás, - pois que o meu nome é Vontade.

William Shakespeare

Pensamento


O poeta é como o príncipe das nuvens. As suas asas de gigante não o deixam caminhar.


Charles Baudelaire



quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Sonata ao Crepúsculo



















Trompas do sol, borés do mar, tubas da mata,
Esfalfai-vos, rugindo, - e emudecei... Apenas,
Agora, trilem no ar, como em cristal e prata,
Rústicos tamborins e pastoris avenas.

Trescala o campo, e incensa o ocaso, numa oblata.
- Surgem da Idade de Ouro, em paisagens serenas,
Os deuses; Eros sonha; e, acordando à sonata,
Bailam rindo as subtis alípedes Camenas.

Depois, na sombra, à voz das cornamusas graves,
Termina a pastoral num lento epitalâmio...
Cala-se o vento... Expira a surdina das aves.

E a terra, noiva, a ansiar, no desejo que a enleva,
Cora e desmaia, ao seio aconchegando o flâmeo,
Entre o pudor da tarde e a tentação da treva.

Olavo Bilac

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Pensamento

"Se tivesse acreditado
na minha brincadeira
de dizer verdades teria
ouvido verdades que
teimo em dizer brincando,
falei muitas vezes como um palhaço
mas jamais duvidei da
sinceridade da platéia
que sorria."

Charles Chaplin

Deslizes












Não sei porquê
Insisto tanto em te querer
Se você sempre faz de mim
O que bem quer
Se ao teu lado
Sei tão pouco de você
É pelos outros que eu sei
Quem você é...

Eu sei de tudo
Com quem andas, aonde vais
Mas eu disfarço o meu ciúme
Mesmo assim
Pois aprendi
Que o meu silêncio vale mais
E desse jeito eu vou trazer
Você pra mim...

E como prêmio
Eu recebo o teu abraço
Subornando o meu desejo
Tão antigo
E fecho os olhos
Para todos os teus passos
Me enganando
Só assim somos amigos...

Por quantas vezes
Me dá raiva de querer
Em concordar com tudo
Que você me faz
Já fiz de tudo
Prá tentar te esquecer
Falta coragem prá dizer
Que nunca mais...

Nós somos cúmplices
Nós dois somos culpados
No mesmo instante
Em que teu corpo toca o meu
Já não existe
Nem o certo, nem errado
Só o amor que por encanto
Aconteceu...

E é só assim
Que eu perdôo
Os teus deslizes
E é assim o nosso
Jeito de viver
E em outros braços
Tu resolves tuas crises
Em outras bocas
Não consigo te esquecer
Te esquecer...

Michael Sullivan / Paulo Massadas

Folhas de rosa





















Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo ...

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume do outrora
Flutua em volta delas, docemente ...

Pelo copinho de cristal e prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e m'embriaga

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que reflectia outrora tantos risos,
E agora reflecte apenas pranto,

E o colar de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mals fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

Florbela Espanca

Plena Mulher




















Plena mulher, maçã carnal, lua quente,
espesso aroma de algas, lodo e luz pisados,
que obscura claridade se abre entre tuas colunas?
que antiga noite o homem toca com seus sentidos?
Ai, amar é uma viagem com água e com estrelas,
com ar opresso e bruscas tempestades de farinha:
amar é um combate de relâmpagos e dois corpos
por um só mel derrotados.
Beijo a beijo percorro teu pequeno infinito,
tuas margens, teus rios, teus povoados pequenos,
e o fogo genital transformado em delícia
corre pelos tênues caminhos do sangue
até precipitar-se como um cravo noturno,
até ser e não ser senão na sombra de um raio.

Pablo Neruda

Pensamento

... Entretanto, não se deve acreditar que todas as dificuldades se atenuem nas mulheres de temperamento ardente.
Ao contrário, podem exasperar-se. A pertubação feminina pode atingir uma intensidade que o homem não conhece...


Simone de Beauvoir

Pensamento

"O egoísmo não consiste em vivermos conforme os nossos desejos, mas sim em exigirmos que os outros vivam da forma que nós gostaríamos. O altruísmo consiste em deixarmos todo o mundo viver do jeito que bem quiser."

Oscar Wilde

Jeito de Mato













De onde é que vem esses olhos tão tristes?
Vem da campina onde o sol se deita
Do regalo de terra que teu dorso ajeita
E dorme serena, no sereno e sonha

De onde é que salta essa voz tão risonha?
Da chuva que teima, mas o céu rejeita
Do mato, do medo, da perda tristonha
Mas, que o sol resgata, arde e deleita

Há uma estrada de pedra que passa na fazenda
É teu destino, é tua senda onde nascem tuas canções
As tempestades do tempo que marcam tua história,
Fogo que queima na memória e acende os corações

Sim, dos teus pés na terra nascem flores
A tua voz macia aplaca as dores
E espalha cores vivas pelo ar...

Sim, dos teus olhos saem cachoeiras
Sete lagoas, mel e brincadeiras
Espumas, ondas, águas do teu mar...

Almir Sater/Paula Fernandes

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

No jardim em penumbra





















Na penumbra em que jaz o jardim silencioso
A tarde triste vai morrendo... desfalece...
Sobre a pedra de um banco um vulto doloroso
Vem sentar-se, isolado, e como que se esquece.

Deve ser um secreto, um delicado gozo
Permanecer assim, na hora em que a noite desce,
Anônimo, na paz do jardim silencioso,
Numa imobilidade extática de prece.

Em lugar tão propício à doçura das almas
Ele vem meditar muitas vezes, sozinho,
No mesmo banco, sob a carícia das palmas.

E uma só vez o vi chorar, um choro brando...
Fiquei a ouvir... Caíra a noite, de mansinho...
Uma voz de menina ao longe ia cantando.

Ribeiro Couto

Damas





















Ânsia de te querer que já não tem mais fim,
Meu espírito vai, meu coração caminha,
Como uma estrela, como um sol, como um clarim,
Mas tudo em vão, sei eu! Tu és uma rainha! ...

És a constelação maravilhosa, a minha
Aspiração, de luz magnífica, ai de mim!
A nudez, o clarão, a formosura, a linha,
O espelho ideal! Ó Torre de Marfim!

Nunca me hás de querer, batendo-me por ti,
Pomo duma discórdia infrutífera, beijo
Todo em fogo, e a arder, assim como um rubi...

Mas é por isso que eu, ó desesperação,
Amo-te com furor, com ódio te desejo,
E mordo-te, Ideal, e adoro-te, Ilusão!

Emiliano Perneta

Flor do mar









És da origem do mar, vens do secreto,
Do estranho mar espumaroso e frio
Que põe rede de sonhos ao navio,
E o deixa balouçar, na vaga, inquieto.

Possuis do mar o deslumbrante afeto,
As dormências nervosas e o sombrio
E torvo aspecto aterrador, bravio
Das ondas no atro e proceloso aspecto.

Num fundo ideal de púrpuras e rosas
Surges das águas mucilaginosas
Como a lua entre a névoa dos espaços...

Trazes na carne o eflorescer das vinhas,
Auroras, virgens musicas marinhas,
Acres aromas de algas e sargaços...

Cruz e Souza

As reticências










Anseio manobrar a língua
dos fatos sólidos
e a outra,
do sentimento abstrato,
explosiva no ódio até
a úmida ternura do beijo.
Palavras com cores diversas,
cinzas e vermelhos
marcando sangue na página.
Haverá um teclado
medindo a tensão de cada dedo,
a mágica apaga versos frouxos,
letras borboletas voam
e pregam mensagens
no teto dos amores fugidios.
Tenho só um dicionário roto,
dedos hesitantes e o
sorriso do humor necessário.
Meu diário é suposto,
foto desfocada da
vida em movimento.
Tento transmitir
apelo, medo, desejo,
nas palavras alinhadas,
tímidos soldados
antes da luta.
É raro saber o gosto alheio
pelo abstrato alimento.
Depois de algumas linhas,
o fim vale como vírgula
para o futuro ignoto
das reticências.

André Carneiro

Se as minhas mãos pudessem desfolhar





















Eu pronuncio teu nome
nas noites escuras,
quando vêm os astros
beber na lua
e dormem nas ramagens
das frondes ocultas.
E eu me sinto oco
de paixão e de música.
Louco relógio que canta
mortas horas antigas.

Eu pronuncio teu nome,
nesta noite escura,
e teu nome me soa
mais distante que nunca.
Mais distante que todas as estrelas
e mais dolente que a mansa chuva.

Amar-te-ei como então
alguma vez? Que culpa
tem meu coração?
Se a névoa se esfuma,
que outra paixão me espera?
Será tranqüila e pura?
Se meus dedos pudessem
desfolhar a lua!

Federico Garcia Lorca

Soneto LXXXVIII




















Quando me tratas mau e, desprezado,
Sinto que o meu valor vês com desdém,
Lutando contra mim, fico a teu lado
E, inda perjuro, provo que és um bem.
Conhecendo melhor meus próprios erros,
A te apoiar te ponho a par da história
De ocultas faltas, onde estou enfermo;
Então, ao me perder, tens toda a glória.
Mas lucro também tiro desse ofício:
Curvando sobre ti amor tamanho,
Mal que me faço me traz benefício,
Pois o que ganhas duas vezes ganho.
Assim é o meu amor e a ti o reporto:
Por ti todas as culpas eu suporto.

William Shakespeare

Tocando em frente










Ando devagar porque já tive pressa
Levo esse sorriso porque já chorei demais
Hoje me sinto mais forte, mais feliz quem sabe
Só levo a certeza de que muito pouco eu sei
Eu nada sei

Conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maçãs,
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Penso que cumprir a vida seja simplesmente
Compreender a marcha e ir tocando em frente
Como um velho boiadeiro levando a boiada
Eu vou tocando os dias pela longa estrada eu vou
Estrada eu sou

Conhecer as manhas e as manhãs,
O sabor das massas e das maçãs,
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Todo mundo ama um dia.
Todo mundo chora
Um dia a gente chega
e no outro vai embora

Cada um de nós compõe a sua história
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Conhecer as manhas e as manhãs
O sabor das massas e das maçãs
É preciso amor pra poder pulsar,
É preciso paz pra poder sorrir,
É preciso a chuva para florir

Ando devagar porque já tive pressa
E levo esse sorriso porque já chorei demais
Cada um de nós compõe a sua história,
Cada ser em si carrega o dom de ser capaz
De ser feliz

Almir Sater/Renato Teixeira

Como nossos pais










Não quero lhe falar
Meu grande amor
Das coisas que aprendi
Nos discos...

Quero lhe contar
Como eu vivi
E tudo o que
Aconteceu comigo
Viver é melhor que sonhar
E eu sei que o amor
É uma coisa boa
Mas também sei
Que qualquer canto
É menor do que a vida
De qualquer pessoa...

Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado prá nós
Que somos jovens...

Para abraçar meu irmão
E beijar minha menina
Na rua
É que se fez o meu lábio
O seu braço
E a minha voz...

Você me pergunta
Pela minha paixão
Digo que estou encantado
Como uma nova invenção
Vou ficar nesta cidade
Não vou voltar pr'o sertão
Pois vejo vir vindo no vento
O cheiro da nova estação
E eu sinto tudo
Na ferida viva
Do meu coração...

Já faz tempo
E eu vi você na rua
Cabelo ao vento
Gente jovem reunida
Na parede da memória
Esta lembrança
É o quadro que dói mais...

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Ainda somos os mesmos
E vivemos
Como Os Nossos Pais...

Nossos ídolos
Ainda são os mesmos
E as aparências
As aparências
Não enganam não
Você diz que depois deles
Não apareceu mais ninguém
Você pode até dizer
Que eu estou por fora
Ou então
Que eu estou enganando...

Mas é você
Que ama o passado
E que não vê
É você
Que ama o passado
E que não vê
Que o novo sempre vem...

E hoje eu sei
Eu sei!
Que quem me deu a idéia
De uma nova consciência
E juventude
Está em casa
Guardado por Deus
Contando seus metais...

Minha dor é perceber
Que apesar de termos
Feito tudo, tudo, tudo
Tudo o que fizemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Ainda somos
Os mesmos e vivemos
Como Os Nossos Pais...

Belchior

Ciclo











Manhã. Sangue em delírio, verde gomo,
Promessa ardente, berço e liminar:
A árvore pulsa, no primeiro assomo
Da vida, inchando a seiva ao sol... Sonhar!

Dia. A flor, - o noivado e o beijo, como
Em perfumes um tálamo e um altar:
A arvore abre-se em riso, espera o pomo,
E canta à voz dos pássaros... Amar!

Tarde. Messe e esplendor, glória e tributo;
A árvore maternal levanta o fruto,
A hóstia da idéia em perfeição... Pensar!

Noite. Oh! saudade!... A dolorosa rama
Da árvore aflita pelo chão derrama
As folhas, como lágrimas... Lembrar!

Olavo Bilac

Declaração














Michelângelo


"O amor que não ousa dizer o nome' nesse século é a grande afeição de um homem mais velho por um homem mais jovem como aquela que houve entre Davi e Jonatas, é aquele amor que Platão tornou a base de sua filosofia, é o amor que você pode achar nos sonetos de Michelangelo e Shakespeare. É aquela afeição profunda, espiritual que é tão pura quanto perfeita. Ele dita e preenche grandes obras de arte como as de Shakespeare e Michelangelo, e aquelas minhas duas cartas, tal como são. Esse amor é mal entendido nesse século, tão mal entendido que pode ser descrito como o `Amor que não ousa dizer o nome' e por causa disso estou onde estou agora. Ele é bonito, é bom, é a mais nobre forma de afeição. Não há nada que não seja natural nele. Ele é intelectual e repetidamente existe entre um homem mais velho e um homem mais novo, quando o mais velho tem o intelecto e o mais jovem tem toda a alegria, a esperança e o brilho da vida à sua frente. Que as coisas deveriam ser assim o mundo não entende. O mundo zomba desse amor e às vezes expõe alguém ao ridículo por causa dele."


Oscar Wilde

(Essas foram as palavras do literato em seu primeiro julgamento, em 26 de abril de 1895.)

domingo, 23 de agosto de 2009

Estaria no céu?















Meu Deus! Será que amanheci ao teu lado?
Neste momento despertado me parece o céu...
Estaria nele , Senhor?
Tudo em minha volta é tão bonito!
Este céu infinito de rubra cor.
As aves que somem no poente
e eu que era tão descrente!
Os banhados , os rios correntes...
Sou merecedor?
Os alagados e corixos,
de cada detalhe o capricho
da Tuas mãos.
O cheiro fresco que brota nascente do chão .
Estou no céu , Senhor?
Vejo correr os animais em completa paz
pelos caminhos...
O cantar livre , nos arvoredos, dos passarinhos.
Escuto até uma viola...
Estou no céu , Senhor , e acordei agora?
Vejo cair o sereno no capim
e molhar meus pés no atalho.
O canto longe dos papagaios...
Estrelas bordarem o céu, sobre o céu!
A lua perdida ao léu
prateando os igarapés...
Acordei no céu , Senhor?
Sou merecedor?
Eu que era tão descrente, tão ausente dos
teus ensinamentos...
Ainda me brindas com este sublime momento?
O vento traz do barro o cheiro,
o canto vindo do brejeiro,
sapaiada coaxa.
Ipês , jatobás , jacarandás...
Mastros levantados no jardim de Alá!
Estou no céu , Senhor, e acabei
de acordar?
Os cavalos dormem feitos sombras...
Uma casa longe
igual a minha , igualzinha!
Senhor , seria a minha?
Meu cachorro campeiro nem me viu...
Cachorro no céu?
Muito embora, este , merecia!
Desperto no amanhecer do dia,
neblina no colossal...
Estaria no céu , Senhor?
Ou seria aqui o Pantanal?

José Geraldo Martinez

Teus pés





















Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.

Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Tua cintura e teus seios,
a duplicada purpura
dos teus mamilos,
a caixa dos teus olhos
que há pouo levantaram voo,
a larga boca de fruta,
tua rubra cabeleira,
pequena torre minha.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem.

Pablo Neruda

As minhas mãos












As minhas mãos magritas, afiladas,
Tão brancas como a água da nascente,
Lembram pálidas rosas entornadas
Dum regaço de Infanta do Oriente.

Mãos de ninfa, de fada, de vidente,
Pobrezinhas em sedas enroladas,
Virgens mortas em luz amortalhadas
Pelas próprias mãos de oiro do sol-poente.

Magras e brancas... Foram assim feitas...
Mãos de enjeitada porque tu me enjeitas...
Tão doces que elas são! Tão a meu gosto!

Pra que as quero eu - Deus! - Pra que as quero eu?!
Ó minhas mãos, aonde está o céu?
...Aonde estão as linhas do teu rosto?

Florbela Espanca

A moça do sonho





















Súbito me encantou
A moça em contraluz
Arrisquei perguntar: quem és?
Mas fraquejou a voz
Sem jeito eu lhe pegava as mãos
Como quem desatasse um nó
Soprei seu rosto sem pensar
E o rosto se desfez em pó

Por encanto voltou
Cantando a meia voz
Súbito perguntei: quem és?
Mas oscilou a luz
Fugia devagar de mim
E quando a segurei, gemeu
O seu vestido se partiu
E o rosto já não era o seu

Há de haver algum lugar
Um confuso casarão
Onde os sonhos serão reais
E a vida não
Por ali reinaria meu bem
Com seus risos, seus ais, sua tez
E uma cama onde à noite
Sonhasse comigo
Talvez

Um lugar deve existir
Uma espécie de bazar
Onde os sonhos extraviados
Vão parar
Entre escadas que fogem dos pés
E relógios que rodam pra trás
Se eu pudesse encontrar meu amor
Não voltava
Jamais

Chico Buarque

Faltando um pedaço













O amor é um grande laço, um passo pr'uma armadilha
Um lobo correndo em círculos pra alimentar a matilha
Comparo sua chegada com a fuga de uma ilha:
Tanto engorda quanto mata feito desgosto de filha

O amor é como um raio galopando em desafio
Abre fendas cobre vales, revolta as águas dos rios
Quem tentar seguir seu rastro se perderá no caminho
Na pureza de um limão ou na solidão do espinho

O amor e a agonia cerraram fogo no espaço
Brigando horas a fio, o cio vence o cansaço
E o coração de quem ama fica faltando um pedaço
Que nem a lua minguando, que nem o meu nos seus braços

Djavan

Os olhos de quem ama
















Pode-se descobrir nos olhos de quem ama,
A luz que brilha intensa e faz-se cristalina,
Mostrando a alma toda a se envolver na chama,
De uma paixão imensa e forte que domina.

Força instintiva essa, n'alma adormecida,
Que, ao despertar se agita, cresce e se reponta
Do coração, e muda inteira a nossa vida.
Fazendo a mente, em sonhos,flutuar sem conta.

E assim o olhar de quem se entrega totalmente
À força da paixão, se expande livremente ,
Rompendo da tristeza o denso e negro véu.

Porque depois que o amor no coração desperta,
A gente se transforma e vive igual poeta,
Olhando para o mundo e vislumbrando o Céu.

Sá de Freitas

Sinfonia










Meu coração, na incerta adolescência, outrora,
Delirava e sorria aos raios matutinos,
Num prelúdio incolor, como o alegro da aurora,
Em sistros e clarins, em pífanos e sinos.

Meu coração, depois, pela estrada sonora
Colhia a cada passo os amores e os hinos,
E ia de beijo a beijo, em lasciva demora,
Num voluptuoso adágio em harpas e violinos.

Hoje, meu coração, num scherzo de ânsias, arde
Em flautas e oboés, na inquietação da tarde,
E entre esperanças foge e entre saudades erra...

E, heróico, estalará num final, nos clamores
Dos arcos, dos metais, das cordas, dos tambores,
Para glorificar tudo que amou na terra!

Olavo Bilac

Hino à beleza










Vens do fundo do céu ou do abismo, ó sublime
Beleza? Teu olhar, que é divino e infernal,
Verte confusamente o benefício e o crime,
E por isso se diz que do vinho és rival.

Em teus olhos reténs uma aurora e um ocaso;
Tens mais perfumes que uma noite tempestuosa;
Teus beijos são um filtro e tua boca um vaso
Que tornam fraco o herói e a criança corajosa.

Sobes do abismo negro ou despencas de um astro?
O Destino servil te segue como um cão;
Semeias a desgraça e o prazer no teu rastro;
Governas tudo e vais sem dar satisfação.

Calcando mortos vais, Beleza, entre remoques;
No teu tesoiro o Horror é uma jóia atraente,
E o Assassínio, entre os teus mais preciosos berloques,
Sobre o teu volume real dança amorosamente.

A mariposa voando ao teu encontro ó vela,
"Bendito este clarão!" diz antes que sucumba.
O namorado arfante enleando a sua bela
Parece um moribundo acariciando a tumba.

Que tu venhas do céu ou do inferno, que importa,
Beleza! monstro horrendo e ingênuo! se de ti
Vêm o olhar, o sorriso, os pés, que abrem a porta
De um Infinito que amo e jamais conheci?

De Satã ou de Deus, que importa? Anjo ou Sereia,
Se és capaz de tornar, - fada aos olhos leves,
Ritmo, perfume, luz! - a vida menos feia,
Menos triste o universo e os instantes mais breves?

Charles Baudelaire

Chuva















A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo... Um longo dia!
Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
Continua a cair pela tarde, lá fora.

Da saleta fechada em que estamos os dois,
Vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
A chuva fina continua, fina e lenta...
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.

Dentro de nós existe uma tarde mais fria...

Ah! Para que falar? Como é suave, branda,
O tormento de adivinhar — quem o faria? —
As palavras que estão dentro de nós chorando...

Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
Estão lá fora no jardim se desfolhando.

Chove dentro de nós... Chove melancolia...

Ribeiro Couto

Essa que eu hei de amar...


















Essa que eu hei de amar perdidamente um dia
será tão loura, e clara, e vagarosa, e bela,
que eu pensarei que é o sol que vem, pela janela,
trazer luz e calor a essa alma escura e fria.

E quando ela passar, tudo o que eu não sentia
da vida há de acordar no coração, que vela…
E ela irá como o sol, e eu irei atrás dela
como sombra feliz… — Tudo isso eu me dizia,

quando alguém me chamou. Olhei: um vulto louro,
e claro, e vagaroso, e belo, na luz de ouro
do poente, me dizia adeus, como um sol triste…

E falou-me de longe: "Eu passei a teu lado,
mas ias tão perdido em teu sonho dourado,
meu pobre sonhador, que nem sequer me viste!"

Guilherme de Almeida

sábado, 22 de agosto de 2009

Canção outonal















Van Gogh


Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas,
mas minha senda se perde
na alma da névoa.
A luz me quebra as asas
e a dor de minha tristeza
vai molhando as recordações
na fonte da idéia.

.....Todas as rosas são brancas,
tão brancas como minha pena,
e não são as rosas brancas
porque nevou sobre elas.
Antes tiveram o íris.
Também sobre a alma neva.
A neve da alma tem
copos de beijos e cenas
que se fundiram na sombra
ou na luz de quem as pensa.

.....A neve cai das rodas,
mas a da alma fica,
e a garra dos anos
faz um sudário com elas.

.....Desfazer-se-á a neve
quando a morte nos levar?
Ou depois haverá outra neve
e outras rosas mais perfeitas?
Haverá paz entre nós
como Cristo nos ensina?
Ou nunca será possível
a solução do problema?

.....E se o amor nos engana?
Quem a vida nos alenta
se o crepúsculo nos funde
na verdadeira ciência
do Bem que quiçá não exista,
e do mal que palpita perto?

.....Se a esperança se apaga
e a Babel começa,
que tocha iluminará
os caminhos na Terra?

.....Se o azul é um sonho
que será da inocência?
Que será do coração
se o Amor não tem flechas?

.....Se a morte é a morte,
que será dos poetas
e das coisas adormecidas
que já ninguém delas se recorda?
Oh! sol das esperanças!
Água clara! Lua nova!
Corações dos meninos!
Almas rudes das pedras!
Hoje sinto no coração
um vago tremor de estrelas
e todas as coisas são
tão brancas como minha pena.

Federico Garcia Lorca

Canto integral do amor
















Cegos os olhos, continuarias de qualquer forma,. presente,
surdos os ouvidos, e tua voz seria ainda a minha música,
e eu mudo, ainda assim, seriam tuas as minhas palavras.

Sem pés, te alcançaria a arrastar-me como as águas,
sem braços, te envolveria invisível, como a aragem,
sem sentidos, te sentiria recolhida ao coração como
o rumor do oceano nas grutas e nas conchas.

Sem coração, circularias como a cor em meu sangue,
e sem corpo, estarias nas formas do pensamento
como o perfume no ar.

E eu morto, ainda assim por certo te encontrarias
no arbusto que tivesse suas raizes em meu ser,
- e a flor que desabrochasse murmuraria teu nome.

J. G. de Araújo Jorge